“Que vejam as comunidades com olhos mais bem vistos”
“A mensagem que a gente deixa para as comunidades que vem sofrendo problemas com o agronegócio, onde o agronegócio é muito presente, é que a luta não é só de uma comunidade, é de todas. Que o pessoal veja as comunidades com olhos mais bem vistos, nem só a nossa, mas todas.
Que chegue mais próximo, tanto o judiciário, quanto todos os outros órgãos. Que veja mais essas pessoas como ser humano, porque são todos seres humanos. Se nasceram e viveram ali, querem se manter ali. Muitas das vezes vem alguém querer fazer um projeto e tirar a comunidade daquele lugar, mas se as pessoas não querem sair, se não querem viver na cidade, acho que tinha que respeitar”.
Rosivaldo Cunha é geraizeiro da comunidade Arroz de Cima, na região de Formosa do Rio Preto, Bahia. As raízes cresceram no território e hoje são mais de 200 moradores e moradoras da mesma família.
A lembrança é de um bisavô que já morava em Arroz de Cima há mais de um século. Os primeiros registros de ocupação na área da comunidade datam de 1872. Além da grande família de Rosivaldo, há ainda mais dezenas de famílias que habitam as comunidades do Arroz, de Cima e de Baixo, de maneira ancestral.
Os principais trabalhos na comunidade envolvem a coleta de frutos, como o pequi, além da plantação de pequenas lavouras e da criação de gado. Na época de seca, o gado é levado para mais perto do rio, e volta para perto das casas quando chega a chuva.
“Eu nasci aqui, minha mãe também, meu avô, bisavô. Vem de geração em geração. Para nós, a comunidade é a sobrevivência da gente. Sempre trabalhamos na roça mesmo. Hoje não tem mais produção de arroz, por causa da chuva, mas milho, mandioca e criação de gado ainda tem, maioria tudo na solta”.
A relação com a natureza é tema constante na vida dos geraizeiros e geraizeiras. Para Rosivaldo, se as pessoas que moram na cidade convivessem mais com quem está na comunidade, concordariam com a preservação do Cerrado e do meio ambiente.
“Quem tá na comunidade tem o conhecimento da natureza. Nasceu ali. Vê a diferença do que tá mudando por causa do desmatamento. Quem mora na cidade, às vezes não vê tanto a mudança do clima, das águas, não vê quando tá baixando. Para eles, a água estando na torneira, tá certo. Mas de ano a ano a gente vê que tá diminuindo. Se eles morassem ou convivessem mais com a comunidade eles iam ver que é bem legal preservar”.
São muitos os povos e comunidades tradicionais no Cerrado, cada um com suas características culturais, religiosas, de moradia e trabalho. Mas se tem uma coisa em comum é a ligação com o bioma. O respeito de populações tradicionais com a natureza é o que contribuiu para que hoje o Brasil ainda tenha um Cerrado para chamar de seu.
“Preservar o Cerrado serve para todo mundo. Tem as bacias de água embaixo e, quando desmata em cima, o assoreamento tampa as nascentes. Mas quando você tem as nascentes jorrando água, serve para todas as comunidades e para todo mundo. O Cerrado em pé é mais futuro do que desmatado”.
Rosivaldo lembra que houve uma conversa, já há muitos anos, se as comunidades da região eram geraizeiras ou veredeiras. A proximidade com o rio trouxe o debate, mas, por fim, as comunidades concordaram em se denominar e se reconhecer como geraizeiras. Vale lembrar que a autodeclaração de populações tradicionais é definida pela Política e pelo Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais.
Durante o cadastro no aplicativo Tô no Mapa, as comunidades têm a opção de marcar uma ou mais tipos de segmentos tradicionais com que se identificam.
A comunidade Arroz de Cima fez o automapeamento com o Tô no Mapa e, segundo moradores e moradoras, a ideia é usar a ferramenta para ajudar na busca pela proteção do território. Isso porque a comunidade vem passando por episódios de invasões por proprietários rurais da região.
“O Tô no Mapa veio para mostrar que a gente tem conhecimento na comunidade da gente, muitas vezes não é visto de fora. Veio para ajudar a mostrar que a gente existe na nossa comunidade”.
Com o cadastro concluído pela comunidade e validado pela equipe técnica do projeto, a comunidade tem em mãos um documento que constata a sua existência naquele local, com uma série de informações que podem apoiar a regularização territorial e garantir os direitos de povos e comunidades ao território que tradicionalmente ocupam.
Muitas comunidades em situação semelhante acabam tendo que lidar com a presença do desmatamento ilegal; com o envenenamento por agrotóxicos, pulverizados no ar ou jogados nos rios; ou até mesmo com ameaças à própria vida.
“A gente vive numa área que a gente protege a natureza e o meio ambiente, mas muitos do agronegócio não veem a gente como protetor. Para eles, somos obstáculo”.
Mas os geraizeiros e as geraizeiras de Arroz de Cima e mais comunidades estão unidos pelo reconhecimento e proteção dos territórios tradicionais. Com a experiência dos mais velhos, o trabalho dos adultos e a força da juventude, o caminho também envolve a articulação de associações, sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, organizações da sociedade civil e órgãos públicos.
“A gente não quer sair daqui da comunidade. Nossos filhos querem estudar, vão para a cidade, estudam, mas voltam para a comunidade. Junto dos pais, avós, todo mundo aqui”.
O Tô no Mapa tem uma parceria com a Plataforma de Territórios Tradicionais do Ministério Público Federal e isso facilita o direcionamento de casos de territórios ameaçados para a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão sobre Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal.
As comunidades que desejarem aproveitar essa parceria e enviar suas informações para o órgão público podem fazer o cadastro normalmente pelo Tô no Mapa e, ao final do processo, autorizar o compartilhamento com a Plataforma de Territórios Tradicionais.