Autoidentificação e autodemarcação são essenciais para reconhecimento e proteção de territórios tradicionais
Em diálogo de saberes realizado durante o X Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, iniciativa Tô no Mapa refletiu sobre o desafio do acesso à justiça a partir do protagonismo de povos e comunidades tradicionais
Ao reunir representantes de organizações da sociedade civil, de povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares (PCTAFs) e do poder público, a roda de conversa Autoidentificação e Autodemarcação: Produção de justiça a partir de protagonismo dos Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores/as Familiares promoveu o diálogo de saberes sobre como o autoreconhecimento da identidade dos povos e comunidades está relacionado a autodemarcação dos seus territórios e como é importante reconhecer essa intrínseca relação para a promoção de justiça no Brasil.
Realizada em Brasília durante o X Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, no dia 15 de setembro, a roda debateu também os desafios políticos que colocam entraves para que a autonomia e o protagonismo dos povos sejam os motores para a defesa de seus direitos. O evento ainda apontou caminhos para que a luta territorial dos PCTAFs seja fortalecida e reconhecida não só entre os povos e a sociedade civil, mas também dentro do Estado.
“É ao se autoidentificarem que os povos reforçam perante o restante da sociedade que existem e, por existirem, que possuem direitos”, comentou o assessor em governança do ISPN, Bruno Tarin.
O termo “autoidentificação”, segundo Tarin, já é relativamente bem aceito dentro dos debates sobre luta e direito territorial, já “autodemarcação” é menos comum e precisa avançar sua incorporação. “Autodemarcação é a capacidade dos povos estabelecerem e gerirem seus territórios e, portanto, também faz parte da identificação de um povo; afinal, o território é inerente à construção identitária tradicional, já que são nos territórios que esses povos e comunidade realizam sua reprodução física e cultural”, complementou.
Desafios, conflitos e diálogos
As falas durante a roda reforçaram que, a partir desses conceitos, se espera a construção ou a efetividade prática de políticas públicas específicas para povos e comunidades tradicionais. As falhas nas interpretações e nos dispositivos jurídicos, muitas vezes restritas às instâncias do poder estatal, refletem uma visão vertical e demonstram a necessidade de um diálogo cada vez mais próximo e efetivo com a sociedade civil e os movimentos de PCTAF’s.
Um exemplo citado foi a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada e promulgada no Brasil, que determina a inclusão e consulta dos PCTAFs em processos de decisão que impactem suas vidas. “Muitos conceitos continuam em disputa, como a errônea interpretação que exclui do enquadramento da OIT os povos não indígenas e não quilombolas, negando a eles o acesso às tomadas de decisão, como em casos de licenciamento ambiental. Essa orientação, ainda adotada pelo IBAMA, infelizmente predomina, mesmo que o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União discordem”, comentou o Antropólogo e Assessor Substituto para Casos de Grande Impacto Social da Defensoria Pública da União, Tiago Cantalice.
A Procuradora da República, Márcia Zollinger, que é membro da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e do Grupo de Trabalho Demarcação, trouxe que: “Apesar da Convenção 169 já ser aplicável e não carecer obrigatoriamente de nenhuma regulamentação, isso não significa que a luta contínua pela efetivação dos direitos dos povos possa parar, pelo contrário, ela é necessária para garantir a aplicação da lei.”
Márcia destacou também a importância da diversidade de pessoas nas instâncias de decisão, incluindo os Povos e Comunidades Tradicionais, essa participação é fundamental para a proteção dos territórios tradicionais. “Precisamos de novas pessoas nas instituições com motivações progressistas, para fortalecer os diálogos e os entendimentos corretos que combatam as ameaças que podem chegar aos povos e comunidades”.
A assessora de políticas públicas e especialista em direito agrário do ISPN, Patrícia Silva, comentou que um dos projetos que a organização acompanha, e que está diretamente ligado às ameaças aos modos de vida e territórios tradicionais, é o Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental (PL 2159/2021). “Esse PL traz risco de licenciamentos em territórios em que vivem PCTAFs, ainda não reconhecidos pelo Estado, sem seu consentimento. O PL passou rapidamente na Câmara e agora está no Senado. Hoje em dia, uma estratégia utilizada para contornar a participação da sociedade é que os projetos não passam mais por comissões fundamentais que deveriam passar, nesse caso, como a Comissão de Direitos Humanos”, esclareceu.
Diante da fala de Patrícia, a advogada popular e Coordenadora de Prevenção de Conflitos no Campo e na Cidade da Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Daniela Reis, destacou que o maior passivo de decisões violentas está no Judiciário, o que exige um olhar de incidência técnica nas comissões que estão sendo formadas para discussão dos processos que interfere nas vidas dos PCTAF’s. “Muitas secretarias são novas e precisam ainda articular com as outras instâncias do governo para desenvolverem suas estratégias integradas. Estamos mapeando todas as secretarias que têm alguma interface com a prevenção de conflitos e queremos criar indicadores dos conflitos no campo em cada uma dessas secretarias”, explicou.
Com esse cenário, Bruno Tarin reforçou a necessidade do diálogo entre sociedade civil, PCTAFs e o Estado, mesmo que ainda exista dificuldade com esse último. “Não dá para abrir mão do diálogo com o Estado, é a partir dele que vamos inserir as visões e entendimentos que os povos possuem sobre seus próprios direitos, estimulando a autoidentificação e a autodemarcação”, comentou. Diante disso, levantou-se a relevância da iniciativa Tô no Mapa, que permite o automapeamento dos territórios de PCTAF’s e como fazer com que esse tipo de iniciativa esteja vinculada e dialogue com políticas públicas. Os povos e as comunidades tradicionais no Brasil são muitos e diversos e, para existirem formalmente, uma estratégia importante é “estar no mapa”.
“O Estado não pode se omitir dos seus deveres e, inclusive, de sua dívida histórica com esses povos, não pode ignorar que esses territórios estão produzindo alimentos, reproduzindo culturas ancestrais e conservando a natureza, apesar de sofrerem inúmeras violências. O Tô no Mapa vem como uma ferramenta para auxiliar e demonstrar a diversidade e quantidade de povos e comunidades e que eles merecem estar nos centros de tomadas de decisão que afetem seus modos de vida e territórios”, reforça Tarin.
Clima, PCTAF’s e soluções
A roda de diálogo também levantou questões como a importância dos povos para o equilíbrio climático. “A gente aprendeu, através de conhecimentos seculares, a viver de forma harmoniosa com o meio ambiente. É preciso de um olhar específico para os nossos direitos”, reforça o geraizeiro e coordenador do Centro de Agricultura Alternativa (CAA), Samuel Caetano.
Como nortes para o futuro, a Quilombola e Coordenadora Geral de Mapeamento e Identificação de Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Mônica Borges, apontou a morosidade para as demarcações por parte do poder público e também a necessidade de se olhar a proteção e integridade física dos PCTAFs que são defensores do meio ambiente. Segundo pesquisa realizada pela ONG Terra de Direitos se o ritmo da demarcação de territórios quilombolas continuar como está serão necessários mais de 2 mil anos para titular todos os quilombos com processos no INCRA.
“Direitos humanos e direitos territoriais estão entrelaçados”- Mônica Borges, Coordenadora Geral de Mapeamento e Identificação de Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais do MDA
Mônica Borges vinculou a perspectiva dos direitos humanos estarem entrelaçados com os direitos territoriais com a necessidade dos PCTAFs serem protagonistas na efetivação de políticas públicas relacionadas aos seus territórios tradicionais, inclusive: “através da apropriação das ferramentas e modos de operação do Estado para conseguirem avançar em suas pautas. Temos que avançar no desenvolvimento das ferramentas e legislações para o reconhecimento de territórios além dos indígenas e quilombolas. Nossa leitura é que existe um contexto favorável atualmente para o debate político sobre isso, estamos trabalhando na secretaria para tal.”
Os modos de vida de povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares trazem soluções para os efeitos negativos da emergência climática, além de serem efetivos na conservação da sociobiodiversidade, mas os direitos territoriais precisam ser garantidos para que esses modos de vida continuem existindo e possam prosperar. Essa foi a mensagem final que mais ecoou durante a roda de conversa.
O diálogo de saberes trouxe à tona a necessidade do Estado brasileiro aprimorar seus mecanismos de participação, mas principalmente a forma como realiza a identificação, reconhecimento, demarcação e titulação dos povos e comunidades e seus territórios tradicionais.
“A gente existe, mas a gente precisa que os outros agentes públicos e sociais também tenham consciência disso e de nossa importância, afinal, os povos e comunidades tradicionais prestam um papel fundamental para o equilíbrio climático e para a sociedade como um todo”, finaliza Samuel.
Texto: Méle Dornelas e Bruno Tarin
Edição: Letícia Verdi