Populações tradicionais garantem conservação e permitem recuperação ambiental de seus territórios
Entenda como manejos sustentáveis e práticas tradicionais protegem os biomas e contribuem para o combate à emergência climática
Foto: Acervo IPAM/ Bibiana Garrido
Em seu livro A terra dá, a terra quer, Nego Bispo conta que na Caatinga os umbuzeiros recepcionaram os quilombolas. “Eles compartilharam seus frutos, suas folhas e suas raízes quando chegamos, e não trouxemos nada para os umbuzeiros. Eles já eram nativos daqui, viemos habitar esta terra depois deles. Foi assim com os pássaros, foi assim com uma planta chamada pinhão – que não é o pinhão-manso, é um pinhão cuidado por nós, ditos humanos, que as juritis adoram”, escreve.
A reflexão que o pensador quilombola apresenta em sua obra aponta para o compartilhamento territorial entre povos e comunidades tradicionais, as florestas, os campos e as savanas, os rios e os animais, em diferentes biomas. Seja na roça, no extrativismo ou na criação de animais, o objetivo é estabelecer uma convivência que proteja os ecossistemas existentes.
Povos tradicionais e conservação da biodiversidade
Os Povos, Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares (PCTAFs) têm um papel essencial na conservação da biodiversidade, como mostram dados do MapBiomas (2021) e do projeto Tô no Mapa. No bioma Cerrado, por exemplo, os territórios mapeados pelo Tô no Mapa possuem, em média, 76% de vegetação nativa e 17% de áreas destinadas à pastagem e agricultura, com pouca mudança na cobertura do solo desde 1985, quando a média era de 80%. Essas comunidades demonstram maior preservação ambiental em comparação à média do Cerrado, que tem apenas 50% de vegetação nativa.
De um modo mais geral, as áreas sob gestão de populações tradicionais – como Territórios Quilombolas, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável – e as Terras Indígenas protegem aproximadamente 30,5% das florestas do país, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA).
A relação entre meio ambiente e povos e comunidades tradicionais geram barreiras naturais contra o desmatamento e servem como modelo de manejo sustentável, contribuindo significativamente para a conservação ambiental. Os modos de estabelecer relações de respeito com os territórios são tão diversos quanto seus habitantes, como pescadores artesanais, apanhadores de sempre-vivas, quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, retireiros do Araguaia, comunidades de fundo e fecho de pasto, entre tantos outros.
Em um contexto de emergência climática, em que a conservação da natureza e ecossistemas naturais se torna cada vez mais urgente, as práticas tradicionais de manejo e ocupação da terra – pautadas pelo equilíbrio entre o uso dos recursos naturais e sua manutenção – oferecem lições valiosas para toda a sociedade.
Esses territórios apresentam índices superiores de preservação e regeneração florestal em comparação com outras áreas protegidas. A alternância entre desmatamento e regeneração é significativamente menor, apontando para um modelo de uso da terra que não apenas cuida das florestas, mas também permite a recuperação natural dos ecossistemas. Esse manejo sustentável, que valoriza os saberes ancestrais e as práticas tradicionais de uso da terra, é fundamental para a manutenção da biodiversidade e para a estabilidade climática em nível regional e global.
A importância de fiscalizar as leis territoriais
Proteger os territórios dessas populações, portanto, não é apenas uma questão de justiça social e de garantia de direitos, mas também uma estratégia crucial para a manutenção dos serviços ecossistêmicos que essas áreas oferecem, essenciais para o enfrentamento da crise climática e para o futuro da biodiversidade brasileira.
Apesar do papel essencial que essas comunidades desempenham, a falta de regularização fundiária ainda representa um grande desafio em relação a invasões e especulações territoriais. “Embora tenhamos evidências da contribuição de indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais para a conservação, a segurança jurídica na posse de seus territórios ainda está distante de ser alcançada. O avanço do agronegócio, da mineração, de projetos de energia e imobiliários sobre os territórios são ameaças frequentes”, explica Patrícia Silva, advogada, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural e assessora de Políticas Públicas do ISPN.
Além disso, Patrícia aponta que as constantes investidas legislativas que buscam reduzir os direitos territoriais, especialmente de indígenas, somadas às dificuldades orçamentárias e administrativas, impedem o andamento de processos de reconhecimento territorial. “No que se refere aos demais segmentos de povos e comunidades tradicionais não há sequer uma norma jurídica específica que reconheça o direito à terra sem que tenham que se valer das Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e dos assentamentos ambientalmente diferenciados “, diz.
A proteção e a fiscalização efetiva das leis territoriais são apontadas como ações essenciais para garantir a segurança dessas populações e a continuidade de seus modos de vida sustentáveis, fundamentais para a conservação ambiental.
Tecnologia a serviço das comunidades: o aplicativo Tô no Mapa
Em meio a esse cenário de desafios territoriais, iniciativas tecnológicas têm surgido como importantes ferramentas de luta e resistência. O aplicativo Tô no Mapa é um exemplo dessa inovação a serviço das comunidades. Desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto Cerrados e a Rede Cerrado, o aplicativo permite que povos tradicionais e agricultores familiares realizem o automapeamento de seus territórios.
A ferramenta gratuita e acessível foi criada a partir de diálogos com diversas comunidades e se apresenta como um instrumento político de grande relevância, fortalecendo a luta por direitos territoriais ainda não reconhecidos. É uma oportunidade de mostrar que os povos tradicionais estão no mapa e devem ter seus direitos garantidos.