Com 200 anos de existência, comunidades quilombolas ainda lutam por titulação e reconhecimento
Quilombos Macacos, Brejim e Curupá ajudam a preservar nascentes do Rio Parnaíba no município que mais desmatou o Cerrado em 2023

As comunidades quilombolas de Macacos, Brejim e Curupá, no município de Alto Parnaíba, no Maranhão, a quase mil quilômetros de São Luís, existem desde o século XIX. Elas foram fundadas a partir da chegada do africano escravizado Tomás Ribeiro, vindo da Bahia antes mesmo da abolição da escravidão no Brasil, em 1888. Apesar desses quase 200 anos de existência, elas ainda não têm a regularização fundiária de seus territórios, sofrem com a ausência de políticas públicas, com a pressão do agronegócio e temem ser obrigadas a abandonar seu modo de vida. No dia 29 de março, Macacos, Brejim e Curupá concluíram o cadastro de seu território no Tô no Mapa, aplicativo de celular desenvolvido para que povos e comunidades tradicionais realizem o automapeamento e que é integrado à Plataforma de Territórios Tradicionais do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Ministério Público Federal.
Os moradores mais antigos de Macacos, entre eles seu Raimundo Ribeiro, de 83 anos, bisneto de Tomás Ribeiro, contam que este chegou à região vindo da Bahia. Conforme os relatos, Tomás mantinha consigo um punhado de ouro que trouxera escondido da África e assim comprou as terras: um paraíso localizado no Cerrado maranhense, repleto de nascentes e brejos de água cristalina, cachoeiras, imponentes buritizais e uma rica vida animal, com araras gritando no céu a todo momento, além de papagaios, siriemas, veados e até onças. No dia anterior à chegada da equipe do Tô no Mapa a Macacos, uma onça havia atacado e levado quatro bezerros do seu Raimundo Ribeiro.

Isolamento
Macacos, Brejim e Curupá quase foram expulsas na ocasião da criação do Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba. O parque foi criado pelo Decreto s/nº, de 16 de julho de 2002, e ampliado pela Lei nº 13.090, de 12 de janeiro de 2015, que acabou sobrepondo o território das comunidades. Três espécies animais têm proteção especial na área: a onça-pintada (Panthera onca), o tatu-canastra (Priodontes maximus) e a onça-parda (Puma concolor).
As três comunidades estão localizadas em áreas de difícil acesso. Depois de chegar a Alto Parnaíba, é necessário percorrer mais 130 quilômetros de estrada de terra até Macacos, Brejim e Curupá. Mas não se trata de uma estrada comum: só é possível vencê-la com um carro tracionado (e não é qualquer 4×4), de moto, de animal ou a pé. De carro, a equipe do Tô no Mapa levou cinco horas para percorrer os 130 quilômetros.
A energia elétrica chega a Curupá e Brejim, as primeiras comunidades no caminho, mas não alcança Macacos, onde as pessoas vivem de forma muito semelhante à dos fundadores do quilombo: da agricultura de subsistência e da criação de animais, como gado, porcos e galinhas. Sem geladeiras, toda a comida consumida em Macacos é fresca — com exceção da carne de sol. Talvez isso ajude a explicar a saúde de seu Raimundo Ribeiro que, aos 83 anos, ainda ajuda na criação do gado, segura bezerros pela corda e ostenta uma memória de fazer inveja. O ar limpo, o verde, o som dos animais durante o dia e o silêncio da noite — que revela um céu incrivelmente estrelado — também contribuem para a qualidade de vida em Macacos.

Regularização do território
O território das comunidades tem cerca de 25 mil hectares, enquanto o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba possui 729,77 mil hectares. Apesar de já serem reconhecidas como remanescentes quilombolas pela Fundação Palmares desde 2016, o processo de regularização fundiária no Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), aberto em 2018, não evoluiu e não há prazo para fazer a demarcação e a titulação do território. A permanência das comunidades depende disso.
“Financeiramente, não estamos preparados. A associação não tem fundos para arcar sozinha com um georreferenciamento. Não sabemos o valor exatamente, mas estamos dispostos a nos reunir, procurar meios e encontrar uma saída. Precisamos fazer alguma coisa para garantir o que é nosso por direito”, lamenta Raimunda Ribeiro, filha de Raimundo Ribeiro, tataraneta de Tomás Ribeiro e atual presidente da Associação Quilombola de Macacos, Brejim e Curupá.
Seu Raimundo Ribeiro ainda guarda as escrituras das terras que herdou do pai, Manoel Ribeiro. Foram duas fazendas — Macacos e Tucum — divididas entre dez irmãos. A parte que lhe coube soma mais de 200 hectares. Apesar disso, ele anda preocupado com a possibilidade de perder o território.
“A gente nasceu e se criou aqui, mas não pode dizer que fica sossegado. Hoje tudo mudou. Antes, se a gente soubesse do direito que tem, ninguém tomava. E hoje, com o dinheiro, eles arrumam o direito, tiram quem é dono e entram”, afirma.
Raimunda Ribeiro, presidente da Associação Quilombola, afirma que tudo o que as comunidades precisam é de reconhecimento e respeito. “Isso significa direito à regularização fundiária de nossas terras, acesso às políticas públicas, energia elétrica, educação, saúde e infraestrutura. E também gostaríamos muito de ser consultados em processos de tomada de decisão que venham a afetar nossas vidas e o nosso território”, afirma.

Desmatamento
Conforme o Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas, o maior desmatamento detectado no Brasil, em 2023, foi de 6.691,29 hectares (confira aqui), justamente, no município de Alto Parnaíba, a cidade maranhense onde ficam Macacos, Brejim e Curupá. Alto Parnaíba também é o quarto município brasileiro no ranking dos que mais desmataram entre 2019 e 2023, com média de 80 hectares desmatados por dia ao longo desse período. Todo esse desmatamento é impulsionado pela produção de soja em larga escala.
O próprio Parque das Nascentes do Rio Parnaíba aparece na lista das 50 unidades de conservação mais desmatadas em 2023, com 268 hectares desmatados naquele ano e 18 alertas de desmatamento.
Em Macacos, Brejim e Curupá, o Cerrado permanece de pé.
“As comunidades quilombolas de Macacos, Brejim e Curupá, têm um valor incalculável para a sociedade brasileira. Nós somos guardiões de uma rica cultura e história africana e afro- brasileira: exemplo de luta, resistência e resiliência diante da opressão e da discriminação. Somos guardiões do nosso território quilombola, localizado dentro do Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, no Bioma Cerrado. Somos protetores do território, da biodiversidade e dos recursos naturais que são essenciais para o futuro do planeta”, ressalta Raimunda Ribeiro.

Tô no Mapa
O Tô no Mapa é um aplicativo de celular desenvolvido para que povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares brasileiros realizem o automapeamento de seus territórios. É um instrumento político que fortalece a busca por direitos territoriais não reconhecidos e que dá visibilidade a comunidades.
Macacos, Brejim e Curupá aprovaram o automapeamento tendo em vista também a integração do Tô no Mapa com a Plataforma de Territórios Tradicionais do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais desenvolvida com apoio do Ministério Público Federal.
“O automapeamento ou cadastro no Tô no Mapa não garante a legalização, titulação ou demarcação da terra pelo órgão competente, mas é fundamental para que grupos tradicionais, especialmente os mais ameaçados, passem a ser alvo de atividades governamentais e de ações de proteção”, explica o antropólogo Carlos Almeida, técnico do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) , que foi facilitador do processo de automapeamento em Macacos, Brejim e Curupá.

Embora não seja garantia para a legalização territorial, as comunidades podem utilizar os mapas produzidos pelo aplicativo para a defesa de seus direitos, seja por meio de ações judiciais, seja subsidiando os órgãos competentes para dar visibilidade às demandas territoriais e de outras políticas públicas. O Tô no Mapa é uma iniciativa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) junto ao ISPN e à Rede Cerrado, em parceria com o Instituto Cerrados.
Cássio Bezerra, assessor de Comunicação do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)