Comunidade se mobiliza contra grilagem verde e impactos negativos das fazendas Estrondo no oeste da Bahia

Condomínio de fazendas tenta usar área dos territórios como se fossem reservas legais das propriedades, contam moradores. Água de rios contaminada por agrotóxicos, desmatamento, liberdade cerceada e gente baleada se misturam na história viva dos impactos negativos da Estrondo em comunidades tradicionais

Câmeras do condomínio de fazendas Estrondo se voltam aos territórios (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

A comunidade Cacimbinha, na região de Formosa do Rio Preto, na Bahia, é uma das sete comunidades tradicionais impactadas negativamente pelo condomínio de fazendas Estrondo, instalado no oeste baiano. Ocupando uma área de mais de 440 mil hectares, o condomínio trouxe como consequência para a região a contaminação da água de rios com agrotóxicos, o desmatamento que ameaça a sociobiodiversidade, além do impedimento da livre circulação entre as comunidades. Com guaritas instaladas nos territórios, a Estrondo quis cercear a liberdade de moradoras e moradores, chegando até a balear geraizeiros. 

É o que contam e o que registram populações tradicionais que vivem nas áreas das quais as fazendas foram se aproximando. A grilagem verde virou prática comum. Isso é, quando comunidades passaram a ser registradas como se fossem reservas legais das propriedades da Estrondo, e não territórios onde vivem famílias tradicionais. Segundo o Código Florestal, propriedades no Cerrado devem manter de pé 20% do imóvel rural como área de reserva legal, ou seja, sem desmatar. Ocorre que essa reserva legal não precisa mais, necessariamente, estar dentro da mesma propriedade, então o fazendeiro pode registrar outra área, fora do perímetro, como reserva legal da área que desmatou.

Comunidades tradicionais têm historicamente reconhecido um papel fundamental na conservação da natureza, e em biomas como o Cerrado, os territórios tradicionais mantiveram, ao longo de séculos, áreas inteiras protegidas e preservadas. Por isso, se as áreas conservadas dentro de territórios tradicionais pertencem a alguém, só podem ser de posse e de direito dos próprios moradores e moradoras dessas comunidades. É, afinal, devido ao modo de vida em harmonia com o meio ambiente, levado pelas comunidades tradicionais, que a vegetação e a biodiversidade nessas áreas se manteve até hoje.

Área conservada pelas comunidades guarda belezas do Cerrado (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

“Uns 10, 15 anos atrás, a gente se deparou com essa questão de conflito. De lá até agora a gente vem lutando esse tempo todo pela nossa comunidade e pelo nosso território. É um pessoal que queria nossa comunidade pra reserva legal, e aí invadiu, colocando guarita, essas coisas, impedindo a gente de ir e vir. Tinha que mostrar documento, passar a documentação da gente, e isso a gente não relevava. Lutamos, às vezes teve momento de pessoas serem baleadas, e em 2019, se não me engano, a gente ganhou uma liminar na Justiça para retirada. Por toda a luta, a gente teve essa conquista da retirada das guaritas, e hoje, graças a Deus, tá mais tranquilo, mas a gente tem medo que eles de novo voltem”, diz Lusineide Gomes, presidente da associação da comunidade Cacimbinha. 

Para Lusineide, a união foi a coisa mais importante para que a comunidade conseguisse frear o avanço das fazendas para cima dos territórios. Cerca de 45 famílias vivem em Cacimbinha, muitas tiram do Cerrado o seu sustento, com a colheita de buriti e de capim dourado, o plantio de mandioca e de feijão, além da criação de animais. Um dos produtos que os geraizeiros e geraizeiras da comunidade vendem na cidade é a farinha de mandioca. Além de comercializarem os alimentos, também os aproveitam para consumo próprio. 

Secagem da farinha de mandioca por Domingos, morador de Cacimbinha (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

Há registros dos primeiros chegados à área que hoje está Cacimbinha desde 1820. Lusineide conta que os pais, e os pais de seus pais, já foram nascidos e criados ali, onde seus antepassados estavam também há muito tempo. “Se for contar uns 200 anos para trás, acho que ainda é pouco. O povo está aqui de geração em geração”.

Com 26 anos, a presidente da associação lembra as histórias sobre as origens do território. O que se conta é que primeiro surgiu a comunidade Aldeia, ali naquela mesma região, e que depois as pessoas foram se espalhando para formar outras comunidades, como a de Gatos e a Cacimbinha. Há quem diga que a povoação vem de remanescentes de Canudos, povos indígenas e quilombolas, que hoje, ao menos em Cacimbinha, se reconhecem como geraizeiros e geraizeiras.

“Geraizeiro é tudo, né? É um lugar que a gente vive tranquilo, vive nossa vida como a gente vive. Vivendo somente do Cerrado, do que a gente planta e colhe, mas é um plantio que a gente tem as formas de plantar e colher que não agride a natureza, e é isso. O Cerrado é uma forma de resistência, porque daqui a gente tira o nosso sustento”, define Lusineide. 

Lusineide é liderança cerrativista da comunidade (Foto: Bibiana Garrido/IPAM)

Cacimbinha completou o cadastro no aplicativo Tô no Mapa, e para a comunidade isso já trouxe benefícios. Lusineide avalia: “A gente ganhou mais visibilidade com o Tô no Mapa, porque pra mim nossa comunidade era uma comunidade esquecida”. Para os próximos anos, o sonho é comum, completa ela: “Tudo o que a gente espera é paz, sossego e melhorias. A gente sabe o que a comunidade necessita. É isso que eu espero para a comunidade no futuro”.  

Na visita da equipe do Tô no Mapa à Cacimbinha, Lusineide mostrou um poema de sua autoria. O texto reflete os sentimentos e as experiências vivenciadas em um período no qual a comunidade esteve ameaçada, e agora, luta para se recompor, ainda sob as consequências da monocultura das fazendas Estrondo. 

“Os impactos atingem muita gente. Há o risco de aterrar a cabeceira dos rios e a gente perder o nosso rio. Foram derrubadas algumas árvores, tipo buriti, que a gente colhe, e outras árvores foram atingidas”, diz. E compartilha a visão como liderança da comunidade: “Eu era uma pessoa muito reservada, até então. Fui crescendo e conhecendo um pouco da história da minha comunidade, as lutas, as dificuldades, e me engajei realmente. Hoje tô aí fazendo o possível e o impossível pelo meu povo”. 

Confira o poema abaixo e assista a leitura por Lusineide no vídeo a seguir:

Neste pardo sertão ferido,
abriram sulcos amargos,
percorreram as curvas dos espigões,
arrasaram a terra
que guardava o vale.

A terra fria desfaz o cansaço,
abre a serra com as mãos desesperada,
cavalgando, montando nas nuvens
para tirar do céu a paz.

Estas minhas palavras 
são de uma época morta. 

Eu sou testemunha desse falecimento
e revivo os ontens voando pelo
Cerrado, buscando, com a alma na
brisa, o canto do Rio Preto…

Para onde vais agora, meu
chão? Por que não deixam crescer,
andar, prosperar?

Meu olhar mira a calliandra
cor de sangue inteligível.

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