“Eu sinto saúde na comunidade”
Catarina Lopes, geraizeira que vive na região de Formosa do Rio Preto (BA), fala sobre as diferenças da vida na cidade e sonhos para o território
A geraizeira Catarina Lopes vive na comunidade Cachoeira, na região de Formosa do Rio Preto, oeste baiano. Seus bisavós, avós e pais já viviam no território que hoje é lar para ramificações da família, com filhos, primos, netos e bisnetos.
“Minha avó morreu aqui com 98 anos, minha mãe também morava na comunidade. A minha família é daqui. Nessas casas aí, é tudo de primo meu. Casei quando eu tinha uns 19 anos, meu marido também era da comunidade. Quando ele morreu, já faz uns dez anos, eu fiquei, e não quero sair não. Só quando eu morrer e for para o buraco mesmo”, diz.
Aos 62 anos, Catarina precisa ir à cidade para fazer consultas médicas, em uma viagem que leva mais de quatro horas de carro. A visita em Formosa do Rio Preto também é necessária para resolver burocracias de vez em quando. Mas, para ela, apesar de fazer tratamentos no centro urbano, é na comunidade que está a saúde.
“Eu acho que os que moram aqui, todo mundo gosta da natureza. Eu vou para a cidade resolver alguma coisa, passo oito, dez dias, mas não gosto de ficar lá. Quero vir para cá, que é um sossego. Parece que até respiro melhor. Eu fico com falta de ar na cidade, principalmente quando tá muito calor. Quando chega aqui e bate aquele vento, parece que eu sinto saúde na comunidade, mais do que na cidade”, comenta.
Um de seus sonhos, que compartilha em conversa com a equipe do Tô no Mapa, é ter um posto de saúde perto da comunidade. Outros desejos de melhorias no território também se referem à infraestrutura, como estradas e energia.
Como a comunidade Cachoeira está cadastrada no aplicativo, o automapeamento a partir da definição da área e dos limites do território pode servir de documento em processos de interesse e em benefício da comunidade tradicional.
“Para o nosso futuro, eu desejo ter estrada boa de Formosa para cá, para ter um posto de saúde, médico, para não precisar ir à cidade. Ter escola, transporte. Trazer energia para cá. E que a natureza continue. Para nós viver aqui até o resto da vida nossa”, deseja.
A saúde também fica em dia com o aproveitamento das plantas medicinais do Cerrado. A geraizeira encontra na natureza a fonte de remédios para o dia a dia, de uso individual ou familiar, a partir do tronco de árvores como o barbatimão e a mangabeira.
“Eu acho muito bonito não destruir a natureza. Tem muita árvore aqui no Cerrado, muito pau que serve para medicina, para remédio. E eu conheço muito pau, né? Conheço a mangabeira, barbatimão, vários tipos do Cerrado. Muita gente de fora vem aqui já pedindo, o povo procura muito. Às vezes a gente pega o que tá precisando, chega em casa e ferve com a água para tomar, para curar uma inflamação, por exemplo”, explica.
Como fonte de renda, Catarina trabalha com a coleta de frutos, tipo o buriti. Ela fala sobre outras atividades desenvolvidas na comunidade para comercialização:
“A gente vive aqui, planta mandioca. Plantava arroz, mas agora não tá plantando mais. Faz a farinha da mandioca; tem o gadinho nosso. Agora que tá ruim para criar, depois que as fazendas chegou por aí, tá muito complicado. Mas mesmo assim a gente tá criando, porque a gente vive disso. A gente cria o gado para vender, para manter a gente mesmo”.
No oeste da Bahia, as fazendas do Condomínio Estrondo ocupam áreas próximas à comunidade Cachoeira e outras comunidades tradicionais vizinhas. A relação entre fazendas e comunidades acirrou com a instalação de guaritas que cerceavam a circulação de populações tradicionais na região. Depois de decisões judiciais favoráveis, a situação foi tranquilizada, mas moradores e moradoras ainda sentem os impactos.
A coleta de buriti também teve mudanças: a área antes alcançada pela comunidade, para chegar aos buritizais, foi reduzida ao ser incorporada pelo empreendimento. Outra atividade de extrativismo alterada pela pressão externa foi a colheita de seda.
“Tinha uma seda que a gente colhia lá em cima que chamava Tucum, e ninguém mais vive disso porque foi desmatado. Aqui embaixo, agora a gente vive do buriti, do coco. Só que o buriti, daqui 1 km para frente, a gente não tá podendo mais apanhar depois que colocaram as guaritas. Eu ia lá montada a cavalo, um cavalo bem manso, com um balde desse de 20 litros. Enchia de buriti, pendurava num pau e trazia de volta. Chegava aqui, eu raspava e dava um prato – prato, que a gente diz, são três potes cheios de 1 litro cada, igual aqueles grandes de margarina. Vendia por 10 reais o prato, naquela época era barato. Hoje o povo tá querendo 7 reais em um litro. Mas agora a gente apanha buriti só para cá da guarita”, relata a geraizeira.
A cura a partir das medicinas do Cerrado também foi impactada: “As fazendas desmataram lá em cima e não tem mais [barbatimão]. Mas eu acho muito importante a natureza, para nós aqui e para todo mundo. Não destruir a natureza. Porque destruíram e tá acabando até com a água. Se destrói o Cerrado, a água diminui. A água aqui era mais forte antes de ter desmatado tudo, os brejos secaram. Tem lugar que o povo não passava a cavalo e agora tá passando de carro, ficou só a poeira, porque secou”, lamenta.
Catarina diz que a união da comunidade, chamada geraizeira por habitar as regiões conhecidas antigamente como Gerais, foi o que deu conta de lidar com a situação de conflito imposta. Na sua percepção, quando a comunidade passou a se reconhecer geraizeira foi que a violência aumentou.
“As coisas de violência que já aconteceu aqui depois que a gente começou a colocar o nome de geraizeiro… mas melhorou de dois anos para cá. Não foi fácil não, teve muito conflito. Eles queriam que a gente saísse daqui e vendesse, mas a gente nunca teve esse plano de sair daqui. A gente se uniu, porque assim, se a gente viver unido as coisas são melhores. É muito importante para nós viver unidos para vencer os conflitos”, afirma.